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As esperanças educadora e feminista em uma roda de leitura

Texto elaborado para a roda de conversa “A literatura na boca de todos: grupos de leitura em Porto Alegre". Com Caio Riter, Christian David, Letícia Strehl e Luiza Milano, na programação do “Caminho da Feira” da ONG Cirandar realizada em 12/11/2022.

Existe uma diversidade incrível nas diferentes ações de promoção da leitura espalhadas por aí. Uma diversidade aqui também reunida nesta sala. Ao pensar sobre o que falar, tentei encontrar pelo menos um ponto comum entre tantas iniciativas distintas que buscam promover o livro e a literatura para além dos espaços de sala de aula. Em nosso caso, nos agrupam aqui, imediatamente, Caio Ritter e a cidade de Porto Alegre. Mas, mais profundamente, o que mais?  

Acho que os ativistas da literatura têm em comum o fato da leitura ser uma parte muito importante de sua própria vida e por sentirem uma urgência em compartilhar essa experiência individual através de ações sociais (PETIT, 2010). Ao nos sentirmos instrumentalizados pela literatura para enfrentar os desafios do mundo, acabamos por nos perguntar: será que um mundo mais justo passa pela promoção da leitura?

Minha resposta particular é: sim, creio piamente que um mundo mais justo passe pela promoção da leitura. Para sustentar o argumento para além da crença, vou tecer comentários usando alguns conceitos teóricos muito freirianos e uma ação prática de leitura cojunta realizada pelas Rendeiras, um coletivo feminista, que se encontra para ler em voz em um bar chamado El Pesto. Assim, vamos lá!

Não por acaso “Conto da aia” , “Fahrenheit 451”, “1984” (ATWOOD, 2006; BRADBURY, 2019; ORWELL, 2019) e outras tantas distopias literárias têm em comum a criminalização das bibliotecas e dos livros. Os regimes opressores inventados na literatura (e tão próximos de nossa realidade com a ascensão da direita por eleições democráticas mundo afora) precisam criar bolhas de informação que desinformam. Afinal, a manutenção do Estado injusto depende da conivência do oprimido para com o opressor. Ou seja, o oprimido precisa ignorar os mecanismos que o submetem a uma situação injusta, caso contrário ele teria recursos para subvertê-la. Neste parágrafo temos então pelo menos três crimes, envolvendo três palavras: bibliotecas, livros e subversão.

Se as distopias servem de alerta para os mecanismos de desinformação, a análise dos contos de fadas é também inspiradora para refletirmos sobre um outro elemento de manipulação: o pensamento mágico. Onde a eterna luta do bem contra o mal, o conflito dos mocinhos e dos bandidos são posicionados na estrutura narrativa na figura do príncipe, que rico, branco, heterossexual branco, (já disse rico?), salva heroicamente todos na estória e ainda conquista o coração da mocinha no final; eles viverão felizes para sempre porque um salvador apareceu. 

São enredos que Chimamanda Adiche(ADICHIE, 2020), escritora nigeriana, batiza de histórias únicas,que  negam o protagonismo dos indivíduos que: brancos, negros, índios, homens, mulheres, trans, ricos ou pobres são heróis de suas próprias histórias. Histórias de um mundo real que, para ser justo, precisa ser construído, não está pronto, escondido em algum cômodo oculto à espera da revelação de um salvador. Estas histórias únicas constroem mitos.

Assim, além da intenção de desinformar, há a intenção de invisibilizar a diversidade social, racial e de gênero, subtraindo da cidadania a empatia e o empoderamento, ambos fundamentais à construção coletiva de um mundo mais justo (FREIRE, 2015). Um mundo que depende da capacidade dos indivíduos de se autoproteger, proteger aos outros e, no âmbito estrutural, reivindicar igualdade de direitos e deveres. Para isso precisamos ser capazes de conhecer, sentir, imaginar, reivindicar, agir e subverter.

E, afinal, o que a leitura tem a ver com tudo isso? Quantas vezes fomos violentamente críticos com alguém e, tempos depois, vivenciamos uma situação difícil e agimos de forma semelhante? E se pudéssemos conhecer,imaginar e passar a sentir o mundo para além da experiência vivida através do uso de um instrumento profundo de aprendizagem? Assim, poderíamos conhecer, sentir, sem necessariamente ter que ter vivido concretamente a situação! Bom, esse instrumento de aprendizagem profunda é a leitura! O ato de conhecer pela leitura aciona regiões cerebrais específicas num processo necessariamente de recriação do conhecimento para compreensão (DEHAENE, 2012; GIANNETTI, 2005), constituindo um processamento mais difícil de informações, mas também mais efetivo de aprendizagem.

Ao contrário do que esperávamos, a emergência dos estados democráticos e o aumento dos níveis de escolarização não têm se refletido em igual, ou mesmo, próxima medida em relação à diminuição das desigualdades sociais. Um problema vinculado diretamente à Educação, considerando que as populações não estão sendo capazes de eleger governantes que busquem  desenvolver e implementar políticas públicas que salvaguardem seus direitos.  Seu nível de desconhecimento é tal que ignoram inclusive seu poder de reivindicar.

Mas o que isso tem a ver com as Rendeiras e nossa atividade do Lendo Juntas?

As Rendeiras são um coletivo feminista formado a partir de alunas e pacientes da Dr. Ângela Figueiredo, num movimento de saúde mental que contempla as pressões e os desafios específicos das mulheres numa estrutura patriarcal. Dizemos estrutura patriarcal porque a desigualdade de gênero é institucionalizada em nosso país, se manifestando nas diferenças  salariais para uma mesma função entre homens e mulheres, nas políticas erráticas de acesso a contraceptivos e na criminalização do aborto, para darmos apenas alguns poucos exemplos.

O “Lendo juntas” no El Pesto foi concebido com inspiração em outros movimentos como o “Leitura em voz alta” e o Programa na “Estante” da Rádio da UFRGS, tendo dois objetivos. O primeiro foi possibilitar nossa aprendizagem como coletivo; o segundo objetivo foi o de ampliar essa aprendizagem a partir do uso de um espaço público para realizar atividade e da produção de conteúdo para redes sociais em forma de textos e vídeos. 

Para alcançar esses objetivos, até agora, trabalhamos com a leitura conjunta de dois livros: o primeiro o “Nós mulheres” da espanhola Rosa Montero e o segundo “Para educar crianças feministas” da nigeriana Chimamanda Adichie (ADICHIE, 2017; MONTERO, 2020). E está na nossa mira “A esperança feminista” das brasileiras Débora de Diniz e Ivone Gebara.

O trabalho com estes dois textos a partir da leitura em voz alta e a discussão posterior (sendo essa parte, precisamente, o grande diferencial da leitura coletiva), nosso trouxe vários de ganhos de consciência, que, ao retomarmos à primeira parte deste relato, buscam romper com a desinformação e a invisibilização como processos de opressão, neste caso, das mulheres.

Essa compreensão coletivamente construída tem como maior desafio sair do discurso crítico para o empoderamento da ação como ocorre com todos os movimentos sociais. Uma crítica que frequentemente é um poderoso mecanismo de denúncia da violência, mas não necessariamente de empoderamento do indivíduo em situação de vulnerabilidade. Assim, precisamos combater muitos sensos comuns popularizados, inclusive pelo movimento feminista, que são sintezizados por algumas frases:

  • A primeira frase é: “Nada mudou”. Sobre esta frase podemos dizer que pelo menos dois indicadores simples mostram o absurdo dessa afirmação: voto feminino e o acesso ao ensino superior. Assim, cuidado ao reproduzir essa frase: o movimento feminista teve imensas conquistas, o movimento tem resultado e devemos seguir lutando (WOLLSTONECRAFT, 2021).
  • A segunda frase é: “Por mais que as mulheres façam, nunca são reconhecidas como os homens”.  As perseguições desmedidas que mulheres em posições importantes na política sofrem são um exemplo real disso, mas o problema é: você deixa de fazer algo por não agradar a todos? Segundo Simone de Beauvoir, as mulheres são programadas culturalmente para agradar e os homens programados culturalmente para transformar o seu entorno. Nosso passo inicial como movimento é reprogramar culturalmente as mulheres para ignorar se estão agradando ou não, mas reforçar seu senso de auto-estima na sua capacidade de mudar o nosso entorno (SAUJANI, 2019).
  • A terceira e última frase é: “Os homens são isso, os homens são aquilo”. Nossos inimigos não são homens, mulheres, trans, brancos, negros, índios, nossos inimigos são os fascistas, são os escravocratas, são os racistas, os machistas e os homofóbicos. Nossa grande luta é contra a desigualdade econômica, racial e de gênero. Nossa grande luta é o combate à pobreza.  Porque é nesta classe crescente das populações que a primeira frase que combatemos tão veemente faz todo o sentido: “entre os pobres, realmente, nada mudou!”.    

Por fim, concluo dizendo a importância incrível da leitura como recurso de aprendizagem e transformação social de um problema tão complexo. Uma complexidade  que exercitei aqui neste texto ao afirmar veementemente algo, e depois ter que me contradizer, porque os elementos específicos da crise humanitária que vivemos têm vários tons definidos pelo nível de pobreza. 

A desigualdade social só será revertida com Educação. Não a educação bancária que nos trouxe até aqui, mas a educação libertadora de Paulo Freire, que nos leva a ganhos de consciência e de poder de ação dos indivíduos, de formação de cidadão não apenas críticos, mas responsáveis, capazes de compreender e de mudar o seu entorno porque o mundo o justo não se faz se sozinho (STRECK; REDIN; ZITKOSKI, 2016). Estamos saindo de nossa distopia brasileira, nos parece, mas não estamos entrando tampouco em um conto de fadas. Somos parte da transformação e, portanto, precisamos promover a leitura e outras tantas formas de garantia de dignidade humana. Viva os clubes de leitura! Viva a cirandar, viva a Beabah, que estão promovendo a leitura na periferia de Porto Alegre, nossa cidade e nossa causa que aqui, hoje, nos reúne!  Muito obrigada!

Referências

ADICHIE, C. N. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. 

ADICHIE, C. N. Para educar crianças feministas: um manifesto. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 

ATWOOD, M. O conto da aia. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. 

BRADBURY, R. Fahrenheit 451. Tradução: Cid Knipel Moreira. 2.ed.ed. São Paulo: Biblioteca Azul, 2019. 

DEHAENE, S. Os neurônios da leitura. Porto Alegre: Penso, 2012. 

FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2015. 

GIANNETTI, E. Autoengano. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 

MONTERO, R. Nós mulheres: grandes vidas femininas. São Paulo: Todavia, 2020. 

ORWELL, G. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 

PETIT, M. A arte de ler ou como resistir à adversidade. 2 eded. São Paulo (SP): Ed. 34, 2010. 

SAUJANI, R. Corajosa sim, perfeita não. Rio de Janeiro: Sextante, 2019. 

STRECK, D. R.; REDIN, E.; ZITKOSKI, J. J. (org.). Dicionário Paulo Freire. 3a ediçãoed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. 

WOLLSTONECRAFT, M. Reivindicações dos Direitos da Mulher. [S. l.]: Lafonte, 2021. 

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